Inteligência artificial no mundo jurídico – exemplos práticos do uso de jurimetria
Por Lucas Ciarrocchi Malavasi, Sócio
28/01/2022 14h19
É correto afirmar que, nos últimos anos, mudanças sem precedentes – como o aumento do número de Alternative Legal Service Providers e os avanços em tecnologia – vêm impactando frontalmente a prestação de serviços jurídicos e a advocacia em si.
A pandemia da Covid-19 alterou a operação do Direito entre todos seus agentes e usuários – Judiciário, partes, advogados e órgãos administrativos. A virtualização de processos e de todos os atos nunca esteve tão evidente, culminando em um volume maior de decisões prolatadas e, por via de consequência, da prestação da atividade jurisdicional. Torna-se notável e evidente o ganho de efetividade que a tecnologia traz à dinâmica de funcionamento do Judiciário. São várias as ferramentas de uso, como, por exemplo, softwares de buscas patrimoniais (como o Sisbajud, por exemplo), a virtualização de audiências e atos processuais, em muitos casos, possíveis de cumprimento e realização pelos celulares, e a informatização dos processos judiciais (Lei nº 11.419/06).
No dia a dia da advocacia e escritórios, a customização dos softwares que fazem gerenciamento dos escritórios, automatizando atividades e, por consequência, otimizando o tempo, é essencial para promover revisões da rotina de indicadores e direcionar o tratamento à causa raiz dos problemas, tanto internas quanto externas.
Dada a devida introdução, gostaria de direcionar a concentração do presente texto para a jurimetria, que, em linhas gerais, pode ser definida como a análise estatística de dados jurídicos, cujo objetivo é permitir a tomada de decisões estratégicas.
Contudo, a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) destaca que essa definição geral não esclarece aspectos práticos importantes. Segundo a ABJ, ao fazer a jurimetria, busca-se dar concretude às normas e instituições, sendo certo que o Judiciário deve ser visto como um grande gerador de dados que descreve o funcionamento completo do sistema, e o Direito deve ser analisado através das marcas que deixa na sociedade.
Em meio a tal cenário, com o apoio da tecnologia e da ciência de dados, as bancas de advocacia podem melhorar sobremaneira a entrega dos serviços jurídicos aos seus clientes. Não se trata de modo algum de perfumaria, mas de um trabalho habilidoso e técnico de um (a) advogado (a) caprichoso (a) e competente aliado às melhores práticas tecnológicas de apoio – pensem em cirurgiões e hospitais de antigamente, cujas ferramentas eram bisturis, material de anestesia, mesa e bandeja cirúrgica, tesoura cirúrgica e etc., e cirurgiões e hospitais atuais, onde é possível ter robôs auxiliando com precisão, trazendo melhores resultados aos pacientes, e salas de cirurgia em que um único aparelho detecta exatamente onde estão os vasos sanguíneos do paciente – algo fundamental tanto para infundir medicamentos quanto para fazer tratamentos contra AVC e derrames, e isso tudo numa velocidade alta, sem necessidade de aguardar exames.
Em fevereiro de 2018, escrevi um artigo chamado “Inteligência artificial no mundo jurídico – too big to fail”, através do qual fiz uma reflexão sobre as velozes e irreversíveis mudanças que a tecnologia começava a provocar no segmento jurídico nacional. Passados quase 04 (quatro) anos, penso que o presente texto conseguirá solidificar e confirmar o raciocínio lá atrás exposto, deixando evidente que não existe volta.
Vale fazer um paralelo entre a tecnologia jurídica atual e método de orientação antiga. Antes de existirem conceitos de norte, sul, leste e oeste em navegações, as pessoas usavam as posições das estrelas e do sol para sua localização. Após os mapas aparecerem, os lugares também passaram a ser referências de localização. Em latim, existe uma expressão chamada “sole oriente”, que significa onde o sol nasce. As pessoas que sabiam a direção do oriente e compreendiam a expressão “sole oriente”, estavam orientadas; as que não sabiam, ficavam desorientadas.
Customizar uma tecnologia ao escritório de advocacia funciona muito, mas, caso não seja possível, diante de expansão do presente tema e dos valores hoje muito mais acessíveis, terceirizar a função para empresas que oferecem serviços de tecnologia jurídica atinge o objetivo. Obviamente, assim como o exemplo de cirurgiões e hospitais, a tecnologia jurídica por si só ainda não caminha sozinha, motivo pelo qual os treinamentos e atualizações devem ser periódicos, tanto os da ferramenta e suas novas funções quanto os institucionais, de modo a orientar o uso pelo escritório como um todo. Além de melhorar a qualidade e eficiência dos serviços jurídicos, a jurimetria ainda representa uma vantagem competitiva: 95% dos advogados brasileiros não utilizam quaisquer ferramentas de jurimetria, como constatado por uma pesquisa realizada em setembro de 2019 pela Turivius, com colaboração e participação da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).
Trazendo para o nosso dia a dia, num exemplo prático e isolado de determinado cliente, usamos a jurimetria processual trabalhista para entregar uma análise detalhada das decisões de cada localidade de atuação nacional, por órgão julgador e objetos (pedidos de reclamações trabalhistas), com comparação, inclusive, de concorrentes de segmento, o que possibilitou uma tomada de decisão assertiva pela empresa. Em outras palavras, o trabalho de jurimetria mostrou que o ticket médio de condenação desfavorável aos interesses de um cliente, em determinada jurisdição e para determinados objetos, estava em crescimento diante de uma prática institucional segmentada há anos, o que subsidiava condenações. O trabalho seguinte foi imergir na cultura organizacional do cliente e corrigir nacionalmente uma cláusula de determinado tipo de contrato interno, o que travou, inclusive, a distribuição de ações, medida semanalmente através da jurimetria.
É possível realizar tal trabalho sem a jurimetria? Sim, eu mesmo, enquanto estagiário e advogado, sempre buscando dados e evidências para tomada de decisão, procurava mapear ao máximo o Judiciário Trabalhista através de sites, muitas vezes para apresentações internas e externas. Mas além do tempo que isso me tomava (e era muito tempo), também havia a porcentagem de erro humano. Com as ferramentas de tecnologia, especificamente a jurimetria, os advogados conseguem trazer informações e insights em tempo real, no dia a dia, a qualquer momento e para qualquer trabalho – ainda mais se o seu sistema de jurimetria está no celular de todos os seus advogados.
Em outro caso – notem a especificidade do assunto – também com o uso de jurimetria processual trabalhista, foi possível mapear todas as decisões de 2017 até 2021 que envolviam [1] sequelas de Guillain Barré (distúrbio autoimune), [2] com empregado afastado sem nunca se beneficiar pelo benefício B-91, [3] exercendo função readaptada e [4] ligando seu quadro de saúde atual a um episódio ocorrido na empresa. Com tal varredura, foi possível apresentar um conteúdo de visual simples (com uso de Visual Law), muito informativo e com uma análise SWOT totalmente jurídica e com dados do Judiciário para tomada de decisão sobre valor e sequência ou não de uma homologação de acordo extrajudicial na Justiça do Trabalho. E, por óbvio, em uma atuação com desdobramento eficiente, com atingimento dos objetivos empresariais, o ganho é conjunto e os reflexos positivos da atuação repercutem também diretamente ao escritório. São muitos os mecanismos da implementação tecnológica na atuação jurídica e enormes as possibilidades, por meio de recursos que trazem qualidade, assertividade e melhor direcionamento das tratativas fáticas relacionadas às ações jurídicas e consultas preventivas. Os usuários das ferramentas não são apenas os clientes, mas o próprio Judiciário, partes, peritos, testemunhas, advogados e a própria sociedade como um todo, porque, no final do dia, todos ganham com os avanços tecnológicos no Direito – assim como na Medicina.
Na área tributária, como mais um exemplo prático de jurimetria, numa pesquisa simples realizada, foi possível ver que dentre os mais de 14 milhões de processos em âmbito federal, que totalizam, aproximadamente, R$ 248 trilhões de reais, há cerca de 1.366 processos discutindo apenas sobre as contribuições previdenciárias, folha de pagamento e encargos fiscais.
De tal recorte, os citados processos possuem um valor envolvido, em média, de cerca de R$ 17 bilhões de reais e a grande maioria deles teve liminares deferidas, mas ainda metade deste volume de ações permanece pendente de decisão final. Vejam alguns números:
Com a análise acima e mais algumas informações dos julgadores locais, tipos de provas levadas em consideração, configuração dos processos vencedores e tempo de duração dos processos, a tomada de decisão ficou mais simples.
Uma outra ferramenta que pode e deve acompanhar a advocacia na própria formatação de suas minutas é o Legal Design, que é a customização das peças jurídicas com o uso de recursos visuais e aspectos tecnológicos (Código QR e ícones, por exemplo), que facilitam o entendimento de tudo que é apresentado ao Judiciário (termos técnicos e o próprio conjunto probatório).
A aceitação pelo Judiciário cresce a cada dia, sendo o Legal Design uma ferramenta poderosíssima e com infinita possibilidade de uso pelo usuário e pelo destinatário, que vai desde um vídeo institucional com esclarecimentos orais até vídeos de demonstração de como funciona uma linha de produção industrial, um setor de logística, de reparação de maquinário, colheitas, fazendas, safras, supermercados, restaurantes, postos de gasolina etc., minorando, assim, as chances de acolhimento das alegações da parte adversa em sentido contrário sobre o cotidiano de tais setores e segmentos, não ficando os clientes reféns apenas de testemunhas, prepostos e documentos.
Investir em tecnologias como jurimetria e Legal Design é fundamental, desde que apoiadas num quadro de profissionais que entendem bem a ferramenta, competentes, caprichosos e dispostos. Em 2018, quando do meu primeiro artigo sobre o tema, e até mesmo quando da pesquisa acima da Turivius e FGV/SP, poderiam tais ferramentas servirem como uma grande e notável vantagem competitiva, mas penso que a “revolução” e adaptação terminaram e a nova realidade se estabilizou, parecendo razoável afirmar que uma advocacia de vanguarda e preocupada com os resultados internos e de seus clientes não conseguirá se manter em alto nível por muito tempo sem o uso de tais ferramentas. Um notebook e uma tela de apoio na mesa para cada advogado (a) e estagiário (a) não eram comuns há pouco tempo.
As informações e ferramentas de qualidade estão muito mais acessíveis e disponíveis do que há 04 anos e, com um uso técnico e maduro pelos operadores do Direito, toda a sociedade ganha.