Artigo: Considerações sobre a Lei do Superendividamento
30/07/2021 16h08
Não é nenhuma novidade que o Brasil vem percorrendo um árduo caminho para manter a economia girando diante de tantos escândalos de corrupção, que prejudicam nossa imagem, e consequentemente, refletem em toda a população.
Mariana Feijon, Advogada.
Após um ano atípico, no qual fomos expostos às situações que jamais imaginaríamos viver, experimentamos as mais diversas emoções e situações que levaram uma grande maioria de brasileiros ao limite, não só no campo emocional, mas também no financeiro.
Em decorrência da pandemia da COVID-19, muitos brasileiros que já não possuíam uma boa condição econômica, sofreram com demissões, redução de salário, fechamento dos próprios negócios, aumentando, significativamente o número de pessoas inadimplentes no mercado.
O número de famílias endividadas no Brasil chegou a 69,7% em junho de 2021, segundo a pesquisa mensal da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), abarcando em média 60 milhões de brasileiros, sendo este o maior porcentual desde 2010. Importante ressaltar que o superendividamento pode ser definido como uma situação em que a pessoa tem um conjunto de dívidas muito significativas, sendo que, mesmo com seu patrimônio e renda mensal, estes não são suficientes para quitá-las.
Com o intuito de proteger essa parcela da população, no dia 02 de julho de 2021, foi sancionada a Lei nº 14.181, que ficou popularmente conhecida como Lei do Superendividamento.
Referida Lei foi incorporada ao Código do Consumidor e tem como objetivo principal a “prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor, bem como a instituição de mecanismos de prevenção, conciliação, tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural e a preservação de um mínimo existencial”.
Dessa forma, a Lei cria a possibilidade de o consumidor endividado conseguir, através de um intermédio legal com o conjunto de credores, a criação de um plano de pagamento, após informar ao Juízo suas dívidas e condições de sobrevivência, especificando valores e para quem deve, de forma que mencionado plano, não impacte a sua renda e permita a quitação dos débitos.
O consumidor endividado poderá apresentar a todos os seus credores, de uma só vez, uma proposta para pagamento das dívidas pelo prazo de até 05 (cinco) anos, se assemelhando a um pedido de recuperação judicial.
Após a propositura desta ação judicial de repactuação de dívidas, será designada pelo juízo uma audiência, podendo ser presidida por um conciliador, na qual os credores serão ouvidos e se manifestarão a favor ou contra o plano de pagamento apresentado.
Havendo consenso, o plano será homologado, momento em que serão suspensas todas as restrições constantes do cadastro do consumidor (SPC e SERASA), bem como, as ações judiciais em curso. Após a homologação, o consumidor deverá, em até 180 dias, iniciar os pagamentos.
Ademais, vale ressaltar que, em razão da repactuação das dívidas, todas as obrigações do consumidor vencidas até o momento de propositura da ação judicial deixarão de ser exigíveis, ou seja, eventuais penhoras realizadas em outros processos judiciais serão automaticamente extintas, liberando-se o patrimônio penhorado.
Outro ponto que merece destaque se refere à questão da insolvência civil. De acordo com a redação dada ao artigo 104-A, §5º do Código de Defesa do Consumidor, o pedido não importará em declaração de insolvência civil, mas poderá ser repetido somente após decorrido o prazo de 02 (dois) anos, contados da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, sem prejuízo de eventual repactuação.
Atualmente, alguns tribunais de Justiça (Bahia, Distrito Federal, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo) já oferecem o serviço a esse público específico. Entretanto, é fundamental que este consumidor entenda que a nova lei não é uma alternativa de renegociação de dívidas.
Outro ponto que merece destaque se refere às medidas protecionistas impostas pela nova Lei, as quais visam a necessidade, por parte das instituições financeiras e demais concessionárias de crédito, de informar ao consumidor a respeito da análise e concessão deste, além das consequências do superendividamento, em caso de inadimplência.
Conforme mencionado, analisando a sociedade brasileira de consumo, é possível identificar consumidores com vulnerabilidades específicas, tais como idosos, jovens, enfermos, trabalhadores autônomos, entre outros, as quais, na grande maioria das vezes, não tem acesso à educação financeira, e acabam por se endividar por ter ao seu “livre alcance” a concessão de crédito.
Em que pese o “dever” do consumidor em conhecer os riscos da concessão de crédito, ainda que ele esteja bem preparado, este sempre será vulnerável, perante uma grande instituição financeira.
Dessa forma, com a sanção da Lei nº 14.181/2021, a educação financeira é responsabilidade primordial para as concedentes de crédito, ou seja, as instituições precisam prestar informações a respeito da análise desse crédito. E, a partir disso, o cenário muda: por via de consequência, temos a capacidade do consumidor em aprender se ele possui a real necessidade desse crédito e se há como pagá-lo.
Importante destacar também que, nos termos do Art. 54-A, §2º, a repactuação prevista na Lei se refere às dívidas relacionadas a quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada.
Excluem-se do processo de repactuação as dívidas que, mesmo decorrentes de relações de consumo, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, bem como as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural. (Art. 104-A, §1º CDC). Em suma, financiamento de automóveis e imóveis não estão incluídos na possibilidade de repactuação.
Por fim, espera-se que as novas disposições legais desestimulem a cultura do endividamento e promovam uma melhoria na educação financeira da população, obstando comportamentos temerários e irresponsáveis, além de preservar o mínimo existencial e evitar a exclusão social do consumidor.