Artigo: Tempos que colocam à prova a gestão de crise, a competência das lideranças e a própria alma humana
07/10/2020 15h47
Em uma crise como a que vivemos, uma liderança não pode deixar de construir pontes entre pessoas e os poderes, ter diálogo, driblar ego, vaidade, ataques e se manter fiel ao objetivo de adaptação e recuperação traçados. Certamente a pandemia trouxe diversos desafios, mas também trouxe oportunidades para que demandas tecnológicas e revisão de processos fossem iniciados
Lucas Ciarrocchi Malavasi, sócio
lucas@claudiozalaf.com.br
Atualmente, é repetição dizer que a crise do novo coronavírus teve origem na saúde e gerou reflexos e novas crises na política, nas instituições e na economia, além de trazer mudanças no comportamento social, consumo e nas relações humanas. Após 06 (seis) meses de pandemia, não é mais difícil enxergar tais fatos e isso ocorre porque, como explicação macro, a doença do Covid-19 também trouxe uma crise global e multidimensional, em que o destino das pessoas está em jogo. É um cenário de cardiograma agitado que sempre pediu serenidade e ações objetivas como tratamento.
Tivemos bons exemplos de coordenação da Primeira Ministra da Nova Zelândia – Jacinda Arden – e, nessa linha, outros países democráticos colocaram em evidência suas ações. A Espanha, Itália, França e Inglaterra, com a escalada da crise, foram obrigadas a adotar o lock-down. Já a Alemanha, a Coréia do Sul e Portugal foram melhores sucedidos no enfrentamento da doença, adotando, antecipadamente, testagem em massa das suas populações, acompanhada de isolamento e monitoramento.
Todos sabem como a Suécia operou na crise e os resultados que teve, bem diferentes, é bom dizer, de outros países escandinavos, como Finlândia, Noruega e Dinamarca, que se convenceram e adotaram o distanciamento social.
Ficou evidenciado por aqui que, numa crise como a que vivemos, uma liderança não pode deixar de construir pontes entre pessoas e os poderes, ter diálogo, driblar ego, vaidade, ataques e se manter fiel ao objetivo de adaptação e recuperação traçados. É que não depende apenas de uma única pessoa ou cargo o sucesso da administração de uma crise como atual – nunca dependeu e nunca dependerá.
Vale dizer, nesse ponto, que a coesão entre as pessoas e entre os Poderes foi uma das linhas mais ausentes no início da pandemia e é claro que a falta de ação de um dos três poderes leva os outros a tentarem ocupar o espaço de poder, geralmente trocando os pés pelas mãos.
Sem tal harmonia e coesão, a pandemia pegou o nosso país com contas públicas desorganizadas, empresas defasadas e já com dívidas, produtividade baixa e saindo de uma crise econômica já estabelecida. Um dos resultados disso tudo foi assistirmos diariamente empresas fechando e pessoas e famílias cada vez mais assustadas – só no segundo trimestre um em cada dez estabelecimentos comerciais fechou definitivamente as portas. É claro que temos bons exemplos de ações dos governos federal, estaduais e municipais, contudo, a ideia aqui é trabalharmos o que não funcionou e o que podemos aprender com isso.
Ainda internamente, enquanto o presente texto é escrito, nosso governo percebe que não descobriu como juntar numa única conta [1] o teto de gastos, [2] a manutenção do auxílio emergencial, [3] os programas sociais, [4] uma projeção declinante para a dívida pública e [5] a preservação da popularidade do Presidente da República.
Notem como um governante é testado à exaustão numa crise como a que vivenciamos. Um exemplo simples disso: se o Governo Federal age, ele está pensando na eleição futura; se, por outro lado, é omisso, ele simplesmente abandonou o país. Exemplos de crises bem gerenciadas existem aos montes por aqui, mas também vemos quase que semanalmente situações sendo geridas de modo equivocado e se tornando crises (no conceito político), sendo certo que cada ação corretiva acaba trazendo mais 3, 4 problemas além do principal.
Isso se evidencia em pandemias porque estas trazem à baila problemas que já vinham ocorrendo e também porque têm uma dose de ineditismo em sintomas e reações. Estas consequências lembram a todos que é responsabilidade de todo governo entregar à população bons serviços, seja na saúde, na educação, na segurança e em outras áreas.
Vírus é algo natural, depois da gripe Espanhola (1918-19) tivemos seis outras epidemias e estudos feitos quando da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) já apontavam para a ocorrência de novas pandemias. Com a desmatamento das florestas, queimadas, mudança climática e alto consumo em tudo, novas frentes de estudo dão conta de que um vírus novo possa aparecer futuramente. Mesmo assim, a maioria esmagadora das empresas passou longe de prever a situação pela qual passamos hoje. Contudo, pelo que se vê, e diante dos dissabores pesados que enfrentamos durante tal período, uma pandemia ou um isolamento social e seus reflexos podem ser cogitados com mais frequência nas preparações orçamentárias e de planejamento, ao menos é o que mostra reportagem recente da Exame.
E o como será daqui para frente? Hegemonia chinesa e o fim do capitalismo?
Pessoas que já passaram por graves crises e pandemias, em que existiram perdas de vidas, empregos e dinheiro em larga escalada, falam que o mundo será diferente, mas também que há exagero em afirmar que tudo mudará radicalmente.
Roberto Azevedo, que dirige a Organização Mundial do Comércio, prevê uma diversificação das cadeias de suprimentos, maior digitalização da Economia, redução da estratégia de os países não fazerem estoques e busca de redução das vulnerabilidades na agricultura e no agronegócio para prover segurança alimentar. O comércio exterior continuará inevitável.
Artigo recente do ex-chefe do Gabinete de Crises da Presidência da República (por 12 anos), José Alberto Cunha Couto, traz lições que podemos aprender até agora com tudo isso. Me limitarei a resumir suas reflexões e quem quiser lê-las integralmente poderá acessar o link do artigo que disponibilizarei como fonte:
Problemas conhecidos, mas que ganham nova dimensão com a pandemia:
• a falta de habitação, tornando impossível quarentenas em áreas pobres;
• narcotráfico, que pode ganhar força com os governantes dando a atenção prioritária merecida à COVID-19. Abril, em pleno isolamento, foi o mês mais violente deste ano;
• o SUS necessitando mais recursos e compensar a pouca presença em áreas do interior;
• a crise do setor de transporte aéreo decorrente da pandemia;
• o isolamento econômico e comercial do Brasil em relação aos outros países, devido ao aumento do número de infectados e mortos;
• a dificuldade de coordenação internacional das ações de saúde – o Governador do Acre não consegue se coordenar com o governador do Pando na Bolívia;
• o esforço mínimo no Brasil, pouco priorizando a área de ciência e tecnologia;
• o quase monopólio de produção de equipamentos hospitalares e de remédios por poucos países.
• a desigualdade social;
• as cidades precisam ser repensadas;
• agendas sanitárias e ambientais pouco valorizadas.
• a falta de liderança para enfrentar as pandemias. Como esperar que a população siga as orientações das autoridades se não houver uma liderança e confiança no governo? Ainda mais em um mundo em que a democracia representativa está em xeque;
• a falta de humildade para olhar o conjunto das políticas públicas antes de criar novas. Cabe aqui novamente abordar as crises sanitárias anteriores e como não aprendemos com elas e não nos preparamos para a próxima crise;
• as políticas e programas públicos não são avaliados quanto às suas entregas e não priorizam o esforço multilateral na busca de soluções para os problemas da humanidade.
Como se vê o futuro pós pandêmico:
• as pandemias anteriores, no último século, não conseguiram alterar o Mundo.
• caso surja uma vacina ou remédio eliminam-se em grande parte os problemas caudados pela COVID-19, mas permanecem os problemas como falta de habitação, falta de pesquisa, desigualdade de oportunidades, etc;
• o risco de achar que os antigos problemas podem ser aceitáveis, quando passar a situação dramática da atual ameaça sanitária;
• a probabilidade grande de uma futura pandemia ainda mais catastróficas, com o aumento da população mundial;
• adotaremos renda mínima ou renda básica permanente.
Muitos falam que, de certo modo, é um exercício inútil e de ingenuidade exigir coerência na política. Contudo, isso pode e deve ser diferente dentro de um espaço “privado” de negócios e é certo que nossa capacidade de reação e coerência foram testadas – privado entre parênteses porque sabemos da influência estatal.
Quem investiu em formação, capacitação de pessoas e tecnologia acabou se adaptando melhor, tendo um momento de transição menor, menos conturbado e colhendo benefícios com mais rapidez.
Claro, é inegável que tudo isso trouxe vários desafios e nós para a gestão de um negócio, mas também trouxe oportunidades para que demandas tecnológicas e revisão de processos fossem iniciados – repensar processos, a propósito, é um bom caminho para a inovação. A tecnologia, todos sabem, é uma das melhores respostas para dar conta da velocidade e precisão exigidas hoje, além de abrir espaço para o profissional ter mais disponibilidade e cuidar com diligência e capricho de suas demandas.
Ainda na esteira da crise, sabe-se que a pandemia já traz controvérsias jurídicas relevantes e gerará grande debate se a contaminação por Covid-19 for considerada doença do trabalho.
É importante que o empregador se esforce para reduzir a possibilidade de contágio do trabalhador e, obviamente, caberá à Justiça do Trabalho analisar cada caso que lhes é e será encaminhado. Nesse sentido, entendo – e tenho falado com frequência em nossos eventos online – que a Justiça do Trabalho exercerá um papel importante em relação ao trabalho remoto e sua continuidade. É certo que julgamentos de primeira e segunda instância a respeito de doença ocupacional ajudarão a ditar o ritmo de permanência em casa ou retorno aos escritórios. Quando o Tribunal Superior do Trabalho começar a se envolver com mais energia, muitas empresas já terão tomado decisões também utilizando como base os julgamentos de instâncias inferiores.
Todos continuaremos sendo testados por muito tempo e, certamente, serenidade e ações objetivas permanecerão sendo um tratamento raro e eficaz em bastante lugar.
Que todos tenham sucesso nessa jornada que não acabou, embora pareça que sim.
Fontes:
- Como as democracias morrem – Steven Levitsky e Daniel Ziblatt;
- O povo contra a democracia: Por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la – Yascha Mounk, Cássio de Arantes Leite;
- Mindset: A nova psicologia do sucesso – Carol S. Dweck (Autor), S. Duarte.
- https://www.youtube.com/watch?v=9vKtlAB5xQE&list=PLomdjDfbSSRuIl6D8AiKC_WnD-BhH3Crk&index=9
- https://www.fdc.org.br/conhecimento/blog/postagem/a-crise-da-gestao-da-crise-da-covid-19