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Artigo: A vacinação da COVID-19 e os limites de atuação do empregador

22/01/2021 10h21

Em 17 de janeiro de 2021, de forma emergencial, foi autorizado em nosso país o uso das vacinas Sinovac e Oxford-AstraZeneca, que serão disponibilizadas gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), havendo expectativa de que, com o passar dos meses, outras vacinas sejam aprovadas pela ANVISA e então aconteça o registro definitivo de todas elas.

Fernando Pazini, da área Trabalhista e Guilherme Gut Sá Peixoto de Castro, sócio.
fernando.beu@zalafcampinas.com.brguilherme.peixoto@claudiozalaf.com.br

Sem qualquer pretensão de apresentar uma abordagem política sobre o tema, chegamos ao momento em que as atenções estão todas voltadas para a vacinação da população, muito embora caiba relembrar que a pandemia ainda se encontra, infelizmente, longe de atingir baixos índices de contágio e óbitos.

A partir deste contexto atual, os empregadores já começam a mirar sua atenção aos impactos que a vacinação terá nas relações trabalhistas, havendo fortes evidências de que uma parcela dos trabalhadores poderá apresentar certa resistência em ser vacinada, surgindo assim dúvidas quanto aos limites do poder diretivo e disciplinar do empregador em relação à possibilidade ou não de impor a vacinação ao seu grupo de empregados ou ainda punir aqueles que se opuseram às vacinas da Covid-19.

Soma-se a este cenário a decisão do STF ocorrida em 17 de dezembro de 2020 em que se julgou se seria constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina, sendo fixada a seguinte tese de repercussão geral:

“É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no programa nacional de imunizações; (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei; (iii) seja objeto de determinação da união, estados e municípios, com base em consenso médico científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar”.

Foi ainda explicado que a vacinação compulsória não significa vacinação forçada, porquanto facultada sempre a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes.

Dentro desta perspectiva de análise, muitos artigos jurídicos já foram publicados, principalmente titulando que o empregado que se recusar a tomar vacina ou usar máscara, poderá ser demitido, encorajando muitos empregadores a tomar tais medidas.

Esta corrente defende que o empregador pode exigir que o empregado tome vacina, podendo aplicar, inclusive, dispensa por justa causa em caso de negativa, ou ainda deixar de contratar um empregado em fase pré-contratual que não apresente documentação comprobatória de que foi vacinado.

Essa vertente se embasa no fato da vacinação se tratar de uma questão de saúde pública, interesse coletivo e segurança no trabalho, essencial assim para a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, conforme previsto no artigo 7º, XXII, da Constituição Federal, combinado com o dever da empresa de cumprir e fazer cumprir normas de segurança e medicina do trabalhando instruindo empregados quanto à precauções de doenças e adotar medidas determinadas pelo órgãos competentes, conforme estipula o artigo 157 da CLT.

O tema é complexo, exige muito estudo e não há uma resposta tão simples e definitiva, ao menos no momento atual onde ainda se discute se haverá insumos para atender os primeiros grupos prioritários de vacinação, sendo até difícil prever quando teremos um cenário em que a maior parcela da população já terá tido a oportunidade de se imunizar.

Consideramos, portanto, que existem lacunas e problemas nesta linha de abordagem exposta acima em que se defende a possibilidade de demissão por justa causa ao empregado que recusar a vacinação.

No momento atual e com base no conjunto de leis vigentes, não vislumbramos que esta direção seja dotada de segurança jurídica às empresas, que provavelmente terão que enfrentar a judicialização do tema, com sérios riscos de rescisão indireta causada pelo empregador, reversões das demissões por justa causa, ou até mesmo o reconhecimento de dispensas discriminatórias, sem falar em indenizações por danos morais que costumeiramente acompanham estes pleitos judiciais.

Claramente se trata de uma encruzilhada ao empregador. Admitimos que é uma situação realmente tenebrosa para qualquer empresa.

Uma situação é a saúde pública, sendo no caso da relação do trabalho, a exemplo, a exigência de uso de máscaras, como equipamento de proteção individual, o que é legalmente obrigatório e não interfere em qualquer direito fundamental ou da personalidade do empregado, e a outra situação é obrigar a inserção de substância no organismo do empregado com consequências direta na sua vida, podendo a ele causar resultados positivos ou negativos.

Conforme mencionado pelo artigo 11 do Código Civil, somente a lei, de forma excepcional, pode transferir a outrem os direitos da personalidade, no caso, o direito de direção da sua própria saúde.

Em outras palavras, pode haver lei que transmita ao Estado o direito de obrigar o indivíduo a tomar vacina, em prol da saúde pública. Sobre o tema, o ministro Luís Roberto Barroso, como relator do ARE 1267879, destacou que, embora a Constituição Federal proteja o direito de cada cidadão de manter suas convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais, os direitos da sociedade devem prevalecer sobre os direitos individuais. Com isso, o Estado pode, em situações excepcionais, proteger as pessoas, mesmo contra sua vontade – como, por exemplo, ao obrigar o uso de cinto de segurança.

Com efeito, no caso das vacinas contra a covid-19, não há, ainda, qualquer medida de Estado obrigando a vacinação. Se o próprio Estado não obriga à vacinação, é certo que o próprio empregador não pode obrigar.

Vale ressaltar que juntamente com a aprovação emergencial foi determinada a implementação de um Termo de Consentimento onde o cidadão deve preencher se deseja receber a vacina, o que demonstra mais um elemento que fragilizaria uma justa causa no panorama atual, uma vez que as próprias autoridades públicas impuseram a possibilidade de oposição à vacina.

Aliás, o empregador não deve, em nenhuma hipótese, no panorama atual, obrigar o empregado à vacinação, pois essas medidas só podem ser tomadas com a existência de lei específica e pelo Estado, conforme exposto pelo próprio julgado do Supremo Tribunal Federal.

Ainda que seja criada lei que obrigue o indivíduo a tomar vacina, sob pena de determinadas restrições a serem aplicadas pelo Estado, não poderá o empregador implementar tal obrigação no ambiente de trabalho em ampliação a eventual lei. Lei específica para caso de obrigatoriedade de vacina no trabalho somente deverá ser aquela que é expressa no sentido de permitir ao empregador obrigar o empregado, podendo aplicar sanções.

Tudo isso porque o empregador deve sempre se ater ao artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho na aplicação de sanções, não podendo interferir no direito da personalidade do empregado, tais como vida, intimidade, dignidade da pessoa humana, entre outros, exceto em casos previstos em lei, o que não é a situação da vacina. A interferência nesses direitos, sem base legal, pode causar dano ao empregado, o que é indenizável, assim como delineado no próprio Código Civil, podendo, também, acarretar a rescisão indireta quando das ameaças de dispensa ou punições, nos termos do artigo 483, alínea a, da Consolidação das Leis do Trabalho.

Fora do âmbito civil, o artigo 5º, II, da Constituição Federal, é claro quanto a ninguém ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei. Esse é o princípio da legalidade que rege todo o ordenamento jurídico.

E, nesse sentido, constranger alguém, mediante grave ameaça (dispensa por justa causa), a fazer o que a lei não manda, pode configurar crime, nos termos do artigo 146 do Código Penal.

Por essas questões, respeitando entendimentos contrários, a tese de que o empregador pode obrigar o empregado a tomar vacina, sob pena de sanções trabalhista, é temerária e não recomendável a empresa na situação atual.

Em contrapartida, para contornar a situação, o empregador pode – e deve – adotar outras medidas até que a pandemia seja extinta ou reduzida a um patamar inofensivo, tais como:

• promover campanha de vacinação dentro da empresa, salientando dos riscos do vírus;
• promover a vacinação particular (quando e se chegar a ser possível) e voluntária de empregados;
• continuação de medidas de proteção, como exigência de máscaras, uso de álcool em gel, higienização diferenciada do ambiente e objetos;
• promover revezamento e limitação de pessoas em espaços no estabelecimento;
• fomentar o trabalho remoto aos empregados que pertencem a grupos que possam compor o rol de contraindicações das bulas da vacina, tais como gestantes, lactantes, pessoas com alergia severa a substâncias contidas nas vacinas.

As medidas mencionadas certamente cumprem os deveres previstos na Constituição Federal de cuidados com a saúde, higiene e segurança no trabalho, sem violar qualquer direito fundamental ou da personalidade do empregado.

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